Câmbio Negro
Foi tudo por dinheiro. Meu Deus, o que a gente não faz por dinheiro?!
Já fiz de tudo na vida e nunca fui mulher e negar serviço! Nunca! Já fui faxineira, secretária, manicura e nunca me envergonhei de nada, não. Mas dessa vez foi demais.
O moço chegou e disse que eu tinha o perfil que ele procurava: tinha rosto marcado, de mulher sofrida e guerreira. E eu ia ter cara de quê, com essa desgraça de vida? Ficou me olhando mais de meia hora, de cima abaixo, analisando e pensando no que faria comigo. E eu nem sabia do que se tratava. Mas ele foi esperto, falou logo de valores antes de tarefas.
Agora, vem cá… eu aqui, nessa miséria, matando um leão por dia para fazer esses meninos crescerem, vou lá negar algum dinheiro? E era mais do que eu ganhava em quase um ano! Enquanto ele falava, eu até já pensava na reforma aqui na casa. Um puxadinho no fundo, uma área de serviço… Eu viajava tão longe, que nem prestava devida atenção às explicações do moço. Concordei, fosse lá o que fosse.
Era coisa de artista, peça de teatro, sei lá o quê. Quando fui ao primeiro ensaio, tinha até a tal da Maria Bethânia. O lugar era tão grande, que me deu medo de assombração. Ela cantava: “quem me pariu foi o ventre de um navio, quem me ouviu foi o vento vazio…”.
Lembrei de tanta coisa enquanto aquela voz fazia eco, que sentia calafrios de tristeza e melancolia. O moço me explicou que eu seria uma negra trazida em um navio negreiro. Mas gente, eu nunca tinha andado de navio! Fingi que entendia, enquanto ele falava de cenas, de atos e de milhões de coisas que eu nunca tinha ouvido. Minha vontade era de sair correndo de lá.
O negócio era o seguinte: eu seria uma negra transportada nos tais navios, que optaria pela alegria do samba e da alfabetização. Tinha uma parte em que eu tinha que cantar: “Vou aprender a ler, pra ensinar meus camaradas…”.
Ah, quer saber, larguei tudo e fui embora.
Como é que é? Ia ter que fingir a alegria de uma negra dentro de um navio negreiro? Isso já era demais. Sei bem tudo o que minha raça sofreu. Agüentar fingimento enquanto um mundarel de gente me assistia, com cara de encanto pela desgraça dos outros? Era isso que ele queria que fizesse: mostrasse a alegria de ser uma desgraçada na vida.
Já representei quase tudo, mas com hipocrisia não! Pelo amor de Deus!
E ainda por cima, eu ia ter que tirar a roupa.
Ah moço, a única roupa que tiro é a do varal!